27 de maio de 2017

A Tampa e a Panela


Um velho caldeirão de aselha comprida, famoso por fazer as mais belas sopas e feijoadas da casa, descansava sobre a mesa de cerejeira, à espera de ir ao fogo, preparar mais uma de suas iguarias prediletas, quando sua companheira, a tampa, iniciou uma conversa.

Disse ela: “Você é mesmo um privilegiado. Como deve ser boa sua vida! Vive vida de rei, ao passo que eu, coitada!, sirvo somente como reles ajudante, apenas dando apoio, enquanto você realiza as mais nobres tarefas. É você quem vive levando a fama e os elogios, enquanto ninguém me dá qualquer crédito pelos serviços prestados.

“Não fale isso, meu amor” — disse o caldeirão, “você é a minha tampa, não há outra, por mais bela que seja, que queira em seu lugar. Você se encaixa perfeitamente em mim, e, juntos, fazemos as mais deliciosas receitas. Sem falar que, quando a empregada nos lava e coloca na prateleira, formamos um belo casal, parecemos um só. A união perfeita!”

“É, mas, ainda assim, você fica sempre com a melhor parte” — retrucou a tampa, com a voz meio embargada. “É você quem prova todos os sabores; você quem sente a textura macia das verduras, a languidez do toucinho defumado, o perfume das especiarias...”

“Mas o sal vive me corroendo; e sou eu quem queima os fundilhos na chama quente” — interrompeu o caldeirão. “Além do quê, você também sente todos os perfumes.”

“Sei. Mas, mesmo assim, você deve ser bem mais feliz que eu, que, convenhamos, também mereço ser feliz” — exasperou-se a tampa. “Seria bom que não houvesse tantas diferenças entre nós. Você deve ter herdado de sua poderosa família de caldeirões todas essas facilidades, enquanto eu, por mais que lute, nunca consigo ser nada nesta vida. Sinto-me como se alguém estivesse com meus direitos. Sou apenas adereço.”

“Não, senhora. Você tem a maior importância. Sem você, eu levaria muito mais tempo para preparar uma receita; com você, a patroa economiza fogo e tostões. Você evita que a cozinha seja tomada pelo vapor da água fervente, deixando escapar apenas um leve e refinado aroma das comidas que fazemos. Você impede que caiam coisas estranhas no cozido, e que poderiam passar despercebidas, desmanchadas em meio ao caldo, coisas que podem ser bem nojentas; além disso, a leve pressão que cria faz toda a diferença, torna muito mais tenras as carnes que cozinhamos.” — respondeu o caldeirão, tentando demonstrar grande paciência.

“Pode ser, mas já perdi a conta de quantas vezes fiquei abandonada a um canto enquanto todos vinham até você, ou até te levavam para lá e para cá, no meio das festas, passeando pela casa, vendo toda aquela gente arrumada. ...Ah, se eu não tivesse você, nem sei o que seria de mim!”  — intercalou a tampa, tentando disfarçar gratidão. “Bom seria se conseguíssemos algum teórico para urdir manobra que promovesse mais igualdade entre todos os utensílios da cozinha, e quem sabe, no futuro, entre todos os utensílios e ferramentas do mundo!” — disse, empolgando-se um pouco, enquanto subia o tom e olhava para um caibro rachado no alto da cumeeira.

O caldeirão ia retrucando, já com ar meio aborrecido, quando a dona da casa, sentada ali perto, lendo Moll Flanders, interveio na conversa:

“Acho que ela tem razão!” — apoiou. “Vou chamar o ferreiro e começar a dar a isso solução.”

À tarde, quando o homem chegou, pediu-lhe que soldasse com cuidado a tampa no caldeirão; depois, que cortasse a peça judiciosamente ao meio, sem distinções.

O homem atendeu ao pedido e, no outro dia, entregou o trabalho pronto, devolvendo a aselha da panela, que sobrara sem função, e que fora retirada de uma das duas novas e inusitadas panelas.

Agora nenhuma das duas tinha asa ou uma tampa oprimida por um mundo de diferenças.

E a tampa então era fundo.

A mulher acomodou com esmero as panelas na prateleira, deu uns passinhos para trás, ponderou um instante com o indicador entre os lábios, e saiu pela porta dos fundos.

Aproximou-se do riacho, na extremidade do terreno, e atirou na água a aselha da panela, que afogou-se rápida, sob pequenas borbulhas, tentando balbuciar alguma coisa.

Pronto. Agora ela tinha duas panelas e justiça.

O regime de uso das mesmas não fica claro como se deu, ou se, ao menos, se deu. Mas estava iniciada a maravilhosa revolução das panelas.


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