10 de junho de 2017

A Promoção


“E, agora, vamos ao sorteio do grande vencedor da nossa promoção!”, gritou o apresentador do programa mais assistido das tardes de sábado no país, Sua Felicidade, de Graça, ao vivo, direto da TV Candeia, enquanto Maria roía tensa as unhas e Agripino, seu esposo, ficava sentado no ar, apoiado apenas na planta dos pés, sobre o sofá da sala, suspendendo aflito as nádegas de cima do assento.

“Um momento..., letra rrruim..., Agup..., Agripino da Costa Contreras é o grande vencedor dos cinquenta mil reais da nossa superpromoção. Comemora, Agripino!...”.

E continuou: “Vamos agora ao grande prêmio surpresa! Mas antes falemos do nosso patrocinador”.

Agripino desesperou pulando feito louco pela sala. Agarrou Maria com tanto entusiasmo que a pulseira do relógio engatou nos cabelos crespos da mulher e ele deu-lhe o maior puxarranco daquela história de amor, fazendo-a rodopiar sem freios, antes de abater-se a todas no tapete de sisal que ornava o aparador, sobre o qual pendia um quadro com os campeões da Taça Ouro de 1986.

Feito raio, ele a juntou do chão antes que ela pudesse levantar manhosa, e, aplicando-lhe outro abraço e um beijo empolgado, a fez esquecer num instante a dor, o despropério e voltar à carga: “amor, será que é um ano de supermercado grátis?”, “ou será mobília nova para a casa?”.

“Eu acho que é um carro zero!”, vaticinou Agripino, empolgando-se, sem qualquer noção de perigo.

“O prêmio surpresa”, retomou o apresentador, “são dez mil reais para o vizinho da direita e mais dez mil reais para o vizinho da esquerda!”.

“O quêêê...?”, berraram os dois, ao tempo em que se entreolhavam incrédulos.

“Eu não acredito que esse desgraçado aí do lado vai ganhar esse prêmio. E, ainda, às nossas custas”, esperneou Maria, socando com toda raiva o sofá. “Esse miserável não vale nada!”, esbravejou, enquanto assistia de cabeça a um filme com o roteiro das fofocas que ele inventava na vizinhança; com as cenas do cachorro maltratado e fedorento sujando, na coleira, toda manhã, a frente da sua casa; com os diálogos de desrespeito com seus filhos; enfim, um filme deplorável, que exibia aquele filho de uma porca com desejo de parecer o dono da rua.

“O do outro lado pelo menos vive calado, com aquele jeitão de bandido”, ponderou em seguida, acordando do pesadelo e tentando se conformar parcialmente. “Só odeio quando ele deixa o caminhão ligado por horas, esfumaçando tudo pela frente. Tem que lavar a parede a cada três meses, isso sem contar o desafio de respirar e o trabalho que dá tirar a fuligem dos móveis quase todo santo dia”.
Agripino, a essa altura, apenas escutava e rangia os dentes.

Foi quando atacou-lhe uma ideia: “Que tal se a gente informar o endereço errado pra eles? A gente escolhe uma casa mais favorável, de parentes, combina tudo com eles...”.

“Deixa de ser burro, Agripino, o endereço já foi no cupom. Não tem mais como mudar”.

“Maldição! É verdade”, entristeceu-se Agripino.

Mas logo seus olhos brilharam, com o estouro de uma nova ideia: “e se a gente conseguisse alguém para se passar por mim, para ir no meu lugar receber o prêmio? Pelo menos eu não precisaria me submeter a esse vexame de aparecer ao lado desses sacripantas em cadeia nacional”.

“Mas, quem? Quem poderia ser tão bom assim, a ponto de nos prestar esse favor?”, ponderou Maria.

Agripino embiocou-se um instante, pensou, enrolou em ato contínuo os cabelos do peito no dedo indicador, um tique que o acometia sempre que estava nervoso, e saiu-se com essa: “que tal o meu cunhado?”.

“Deus me livre!”, rebateu Maria, “meus irmãos jamais fariam um negócio desses”.

“O Cilas, o mais novo, ele é um nó sem ponta, não vai nos dizer ‘não’; ele deve topar por uma gorda porcentagem, uns dois ou três por cento do nosso prêmio”, insistiu Agripino.

Contrariada, mas vendo-se com poucas saídas, a esposa e sempre fiel escudeira daquele Quixote que não era Dom assentiu na imprudência.

Rumaram para o telefone em um átimo.

Agripino abriu negociações com o cunhado.

Poucos minutos depois, bateu o telefone desolado: “Esse teu irmão é um velhaco, hein! Disse que não topa por menos de trinta por cento. É um belo de um aproveitador!”.

Maria rapidamente justificou: “é porque ele não quer ir, e, pra não fazer desfeita, pediu o impossível”.

“A-hã”, balbuciou colérico o esposo.

Depois de pensar em várias alternativas, todas sem qualquer perspectiva de sucesso, decidiram que iriam eles mesmos receber o prêmio, da forma mais prática e objetiva quanto pudessem. Afinal, o dinheiro não podia ser desperdiçado, vinha em boa hora, caíra exatamente no alvo, o apertado orçamento da casa.

Foram. E foram muito bem recebidos pelos funcionários da emissora, que os fizeram sentar juntos, todos os venturosos, a família Contreras e seus indigestos vizinhos, em cadeiras dispostas lado a lado, na primeira fila, rente ao palco.

Sem muita conversa, tentaram disfarçar donaire nos sorrisos forçados, na afabilidade tartamuda e nos gestos mecânicos.

Finalmente estava chegando a grande hora.

O apresentador pediu o comercial e as equipes de apoio correram desesperadas para mudar o cenário, preparando um engenhoso dispositivo para uma chuva de notas falsas, enquanto belas garotas seminuas rebolavam e um monstrengo como que saído de um livro de Mary Shelley alegrava a plateia.

“Estamos de volta para todo o Brasil”, anunciou o animador, emendando a conversa que vinha de travar no bloco anterior com seus convidados ilustres; “em instantes, depois de ouvir a sempre superconsciente análise de nossa estrela do seriado Tua, sem Rodeios sobre a crise da economia globalizada, daremos início à premiação dos vencedores do grande concurso Sua Felicidade, de Graça!”, e passou a palavra à voluptuosa intelectual de fim de semana.

“Queremos agora chamar a família Contreras e seus estimados vizinhos!”, anunciou finalmente o apresentador, e uma saraivada de papeis simulando notas de real infestou o centro do auditório, enquanto a música alta preenchia o ambiente.

Um pouco acabrunhados, diante de tanta luz, tanta câmera, tanta gente, tanto barulho, sentiam-se como uma fera que entra indefesa no picadeiro pela primeira vez.

Os desbravadores, enfim, invadiram a cena, enfileirando-se de pé, em uma ridícula fila, estilo pelotão de fuzilamento.

“Aqui o nosso guerreiro Agripino. Chega mais pra cá”, empurrando-o pelas costas, para um melhor ângulo de cena. “Como você recebeu a notícia de que era o grande sortudo da vez?”, principiou o apresentador.

“Na maior tranquilidade. Eu estava ocupado, concentrado revendo uns papéis do trabalho quando ouvi algo parecido com meu nome na tevê. Fui ver e não deu outra, era eu mesmo o grande sortudo. Quando a Maria chegou, ela quase não acreditou quando eu disse que havíamos ganhado”, gabou-se Agripino.

“E nas suas palavras, Maria, como foi a emoção de receber essa notícia?”, continuou o locutor.
“Liguei imediatamente pra minha mãe e pra todo mundo lá de casa. Meus pais, meus irmãos. Todo mundo ficou muito feliz por nós, porque veio em muito boa hora”, respondeu Maria, com um sorriso meio tenso, evitando Agripino.

“E os amigos aqui do lado, os felizardos vizinhos de vocês, o que vocês acharam de eles terem garfado o prêmio surpresa, que foi criado para incentivar e mostrar a união, o espírito amigo e solidário do povo brasileiro?”.

“Ficamos muito felizes por eles! Brasileiro é isso, tem esse espírito de dividir. A gente não pode querer as coisas só pra gente”, arrematou Agripino, conjeturando que aquilo era o melhor a ser dito naquela hora.

“E vocês dois? Qual o nome de vocês?” — dirigindo-se à dupla de vizinhos.

“Matias”, respondeu o primeiro.

“Guillaume, coisa da minha mãe”, completou o segundo.

“O que vocês acharam de embarcar na sorte dos vizinhos?”.

“Bom, a gente estava conversando ali, há pouco, eu e ele. Nós dois também tínhamos comprado o cupom, e, se fôssemos premiados, também ficaríamos muito felizes de ter nossos vizinhos premiados junto com a gente. Lá, toda a vizinhança se respeita e se dá bem. Por exemplo, os nossos amigos aqui, sempre que possível a gente ajuda eles!”,  arrematou  Matias,   enfiando   com   os  olhos  Guillaume em suas palavras.

Maria corou, procurou, abismada, Agripino, mas, em um esforço homérico segurou a língua.
Em seguida, três dançarinas entraram requebrando, cada uma com um checão tamanho família e os entregaram aos felizardos.

Enfim, tudo se resolveu e eles voltaram para casa.

À noite, na hora de dormir, Maria e Agripino, deitados, exaustos da aventura, fitavam o teto sobre a cama do casal, e refletiam sobre os últimos acontecimentos. Ponderavam sobre como aquele dinheiro iria ajudar; se poderia dar uma merecida folga nas despesas mensais.

Após algumas sugestões de parte a parte, decidiram que usariam para dar entrada em uma casa nova, em outro lugar, mais favorável.

Beijaram-se com carinho, acomodaram-se para o sono dos inocentes e adormeceram.




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